quinta-feira, 8 de março de 2018

Alcance - E a história da exposição que nunca acontecerá













Sobre a Zilda e eu
Bertho Horn


Eu me lembro de estar com muita raiva quando rabisquei seu rosto. Lembro de pensar "eu poderia nunca mais falar nada, não emitir mais nenhum som e substituir tudo por imagens". E foi assim que ela falou comigo, me jurando tentar ser a melhor companhia que alguém poderia ter. E ela tem cumprido sua promessa até hoje. Mesmo quando passo alguns dias trabalhando em outra coisa, em outros projetos pra teatro ou em livros ou música. Lá está ela, de canto, me direcionando, me dizendo coisas legais e me cobrando sempre por trabalhos e posturas melhores e mais corretas.
Enquanto todos os outros dividiam seus segredos em caderninhos decorados ou falavam com melhores amigos, ou simplesmente não falavam, eu a desenhava. Absorvia o que lia e praticava em desenho com ela.
Ao longo do tempo, claro, ela envelheceu junto comigo.
Teve tantos conhecidos (eu nunca achei que tivesse algum amigo de verdade) quanto eu e eu a desenhei passando por exatamente tudo o que passei. As humilhações todas, as dores todas, as recusas, os tapas, a solidão... Todos os sentimentos.
Eu me exumei, repassei cada dor e angústia. Eu as esbocei, arte-finalizei e, em algumas, pintei. Eu me expus ao mundo. Sem dó, assim, como quem conta uma noticia boba.

Um dia eu a lancei ao mundo. E devido a sua/minha postura diante da vida, ela apareceu numa grande revista, a Capricho. Naquela ocasião eu havia mandado pra todo canto diversas cartas contendo uma revistinha dela, feita com esmero e cuidado. Nada marginal, não. Fiz todo o acabamento em umas 10 revistinhas, coloquei marca-páginas, fotos de trabalhos meus numa embalagem bem feita. Um envelope decorado e tudo o mais.
Lá estava ela, gordinha cheia de problemas, falando de sentimentos profundos e afrontando padrões descaradamente.
A única resposta que tive, via telefone, foi da revista Capricho. Quando fui até lá na redação eu a vi (meio deslocada), mas exposta a todos num mural onde se podia ler com letras azuis "COISAS LEGAIS QUE APARECERAM NESTE MÊS".
Fiquei contente.
Me foi dito em segredo que, em partes, ela era necessária ali. Nas pequenas reuniões que tinha com o meu editor ele sempre deixava claro que as coisas que eu escrevia iam de encontro a uma realidade totalmente diferente e que isso era genuinamente bom. Claro, algumas tiras eram impossíveis de serem publicadas, mas era vistas e provocavam sentimentos. Elas provocavam!
Algumas conseguiram ir pra rua em milhares de revistas enquanto outras ficavam lá, expostas. Durante todo aquele ano ela afrontou tudo o que era publicado, à sua\minha maneira eu destilei meu ódio profundo e colorido nas tiras. Eu via risos naturais, risos fingidos e risos nervosos. Ela era um modelo ímpar dentro de uma publicação da moda.
Cheguei a inscrever Zilda num concurso de moda dentro da publicação, sem que meu editor soubesse, claro. Fiz uma ilustração grande a aerógrafo, com uma técnica pretensiosa, realista na medida do possível. Quando voltei à redação, novamente, lá estava o cartão de quase um metro exposto. Algumas pessoas me cumprimentavam pelo trabalho. Outros me olhavam com um profundo desprezo. Porque me foi dito, em alto e bom som, que ela quase ganhou. Uma garota toda afetada, que aparentemente não entendeu a piada, disse entre dentes "ate parece que uma gorda assim ia ganhar alguma coisa". Naquela roda alguns riram do que a garota afetada disse. Eu só olhei pra ela, sem rir, e disse, em alto e bom som, "deve ser muito triste ser você".
Ao final de um ano, devido a uma reformulação editorial, saímos de lá.
Mas sua/minha vida prosseguiu.
Dei a ela um lugar legal pra morar, uma cidade. Dei a ela a minha casa desenhada em todos os detalhes, mas com um adicional do estúdio no andar de cima, algo que sempre sonhei em ter.
Uma palavra sobre a cidade onde ela mora, creio que foi meio baseada em Sona-Nyl (citada no conto A nau branca de HP Lovecraft). Porem, na cidade de Lovecraft, não havia dor ou morte enquanto na minha havia lá morte e alguma dor mas, como no conto, ela é fora do tempo e é coberta pelo nevoeiro em boa parte do dia. Eu gosto de nevoeiros.
Apesar e ela ser uma personagem feminina nunca ousei adentrar a intimidade feminina, creio que devo falar apenas sobre o que me dói enquanto ser humano de uma forma bastante especifica e não sobre as turbulências da menstruação, por exemplo. Seria uma mentira bastante grosseira e acredito que qualquer visão masculina a respeito da intimidade de uma mulher seja desrespeitosa, sem falar estereotipada. Quando escrevo algo sempre mostro a alguma mulher. Já refiz textos de vinte páginas do zero assim com redesenhei paginas inteiras depois de uma simples franzida de cenho, ou de um suspiro mais profundo de uma mulher. Não penso que seja ruim, pelo contrario, quando isso acontece me forço a ser melhor, ter linhas mais suaves e palavras mais lapidadas. Por respeito.
Eu ainda desenho sem criar uma única linha de texto como base. Meu método de criação é ao contrario e acredite, não ha nada aqui por acaso. E só me sento pra desenhar se valer a pena. Eu não desenho nada só por desenhar. Porque desenhar é muito importante pra mim.
Então ainda estamos aqui.
Eu que desenho ela que me desenha.
Eu que falo com ela que fala por mim.
Esta é a verdade, esta é a historia.
Se você puder, preste atenção.

Obrigado


 Ps.: Eu descobri, da pior forma que, o pior dia sendo o que escolhi ser é infinitamente melhor do que o melhor dia sendo qualquer outra coisa.

Paz a todos

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