Por Bertho Horn
A
você... e aos demais.
Vamos
falar de uma parte de mim. A parte maior que não partiu ainda. Esta que está
aqui agora e lá longe também.
Minha
história é manca, deficiente e debilitada.
Quando
não são com elas mesmas, pessoas amam a desgraça. Gostam de sorrir e acenar pra
ela, como uma miss Sempre Inverno. Que inferno. Vamos falar pra esta parte que
ouve tantas vezes por tantas vozes a mesma mentira, o mesmo “tudo vai ficar bem” de tantas gentes de
brancos dentes. Às vezes só há um jeito de se escapar. E você deseja. Do que os
outros dizem e do que você cansa de repetir pra si mesma. De tantos jeitos.
Eu,
em segredo, enfio agulhas nas minhas veias. Elas doem. As veias. Os caminhos
que o aço inoxidável percorre dentro de mim. Eu os sinto. Viajando. Nenhuma
delas ainda chegou ao seu destino. Na grande casa, prisão ou orfanato onde
residem todos os sentimentos que ninguém mais precisa. Ou quer. Ou deseja. Sim.
É verdade. O orfanato. A prisão. E as agulhas.
Meu
pai não quis ser meu.
Minhas
amantes não almejaram ser minhas.
Meu
filho, este... ele não me avisou quando se retirou. Pra ele eu era um
inconveniente. Pra mim, poderia ter sido a descida do vagão. Poderia ter sido aquele
que mais amei. Minha redenção, minha salvação, sabe. A parte. A chance de eu
poder ser alguma outra coisa melhor que isto aqui. Esta caixa de carne,
lágrima, saliva, suor, merda, mijo e autoestradas de sangue e pus cheias de
agulhas e sentimentos deficientes, escoriados, mutilados, órfãos.
Vocês
não sabem o que é a Dor. Não sabem como dói saber que as melhores coisas que
você poderia querer nunca serão escolhidas por você, mas sempre por outra
pessoa. Parece que outra pessoa sempre viverá os acontecimentos que você sonhou
pra si mesmo. E temos esta ilusão estúpida de sermos nós o centro de tudo.
Nunca estamos no centro de nada. No máximo somos um filtro já sujo e velho
demais de toda esta latrina. Localizados entre o passado mofado e o futuro
cheirando a cândida. Juntamos os dejetos descarregados dia-a-dia sobre nós. E
somos nosso próprio genocida particular.
Nada
passa na traqueia trancada, espremida entre ânsia e asma. Ninguém nunca nos
explicou de verdade o “e se não ficar
bem?”. O que devemos fazer quando “não
está tudo bem”? Quando o trem continua andando, enquanto nós queremos
desesperadamente descer, o que devemos fazer? O que devemos fazer quando nossa
redenção é negada? O que fazer com toda esta experiência e chorume herdados ao
longo dos dias? O que fazer quando não resta mais NADA a se fazer? E se o drama
for algo que se herda como os olhos azuis e o cabelo enrolado?
Estamos
deliciosamente perdidos e perdidamente equivocados. Esperamos por tanto tempo
as mentiras se tornarem verdades, que abrimos mão de sermos o que deveríamos
ser pra nos tornarmos outras coisas. Nos distanciamos tanto. Tanto. Tanto, ao
ponto de rirmos e nos deleitarmos quando alguém surge e diz todas as verdades,
nossas verdades, aquelas todas que um dia deveríamos ter dito.
É
estranho querer afagar o rosto mais lindo que eu nunca vou conhecer de verdade.
Isso é passado. E o passado é um espectro com olhos de abismo. E enquanto isso,
as agulhas seguem seu curso. Mais uma está a caminho. Dói. De verdade. Como a
falta. Como não ter umbigo. Como não ter descido. Como ter mentido. E por ter,
tanto tempo, esperado.
O que
você faria? Aqui, no meu lugar?
Este
é o fim.
Um
deles.
O que
vai iniciar de vez todas as outras coisas.
Além.